quarta-feira, 2 de maio de 2012

Um híbrido bem-te-vi


Moro num idílico paraíso ilusório no fundo de minhas memórias, que há 
muito já perdeu o pitoresco encanto bucólico dos meus tempos de criança, 
época em que nos dedicamos a usufruir sem ver, para depois de velhos, 
repassar imagens do que não podemos mais usufruir... 
Meu paraíso nada mais tem da Velha e calma Vila onde nasci, a não ser que eu 
me sente na areia da praia, com tapa-olhos e protetores de ouvido, olhando 
para o mar. Mas o mar é sempre mar. Não pode ser asfaltado, ainda não o 
podem invadir os arranha-céus que nos arranham também os olhos e a alma. 
O único refúgio imutável é a estrada velha do Convento da Penha, que, 
tombada, nos derruba da soberba e nos faz tão recém-nascidos diante da 
elegância e nobreza de suas árvores!
Lá, sim, me sinto em casa, como quando subia o morro do Convento pela mata 
com o pai e o mano Tó. (...) Não havia prazer maior do que os nossos passeios 
exploratórios com o pai! 
Quando saíamos do perímetro quase urbano da Praia da Costa e vínhamos 
como bandeirantes para os lados alviverdes de Itapoã (com seus barracos na 
vila dos pescadores) e Itaparica, que só tinha aquele cavalo branco pastando 
e esperando pelo susto, nunca poderíamos imaginar essa invasão 
desenfreada do concreto que quase nos expulsa todos os passarinhos da 
infância! 
Quem hoje vê este emaranhado de prédios, asfalto e estranhos, nem sequer 
consegue crer que o nosso melro veio nos adotar por livre e espontânea 
vontade, descendo as escadas da casa como velho morador, depois de ter 
pousado no terraço, cansado de explorar o mundo sozinho. 
Mesmo assim, espremidos por todos os lados por paredes que se fecham como 
sarcófagos e salas dos tesouros das antigas pirâmides, sufocando cada vez 
mais o nosso oxigênio, quando acordo, ainda ouço bem-te-vis. 
E feliz, abro a janela, olho para a árvore em frente e lhes dou bom dia. 
Só que este ano, algo tem me instigado a curiosidade. 
Tenho ouvido todos os dias um "canto triste d'araponga", sem lograr ver 
arapongas... 
E não é uma voz de araponga adulta, mas de filhotinha, se é que 
araponguinhas bebê falam como os bebês humanos, com vozezinhas 
pequenas... 
Intrigada, resolvi investigar. E, voltando da rua, certo dia, ouvi-o cantar 
novamente, bem na minha árvore de bem-te-vis. 
Parei, esperei pacientemente, até que o danadinho apareceu, num galho mais 
externo da dita cuja, e qual não foi o meu espanto!!! O canto de araponguinha 
vinha de um baita bem-te-vizão albino. 
Acho que o pai dele deve andar sem pio por aí, porque a Dona Bem-te-vi andou 
passeando com o Arapongo da vizinha. 
Ou então, esse sufocante progresso já está degenerando totalmente a natureza 
perfeita com que Deus nos presenteou!




                                      ................................Tixa, 24/07/2005

2 comentários:

  1. Lindo texto, o que não me espanta.

    Pena do Bem-te-vi, chifrudo.

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    1. Hahaha!!!! Também tenho pena, isso não se faz!!!!!

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